Da África à mesa brasileira

“Vou mandar escrever seu nome, Na folhinha do café, Para todos ficarem sabendo, Meu amor chama José.” (poesia popular, São Paulo)
 

Vamos tomar um cafezinho…

Tão brasileiro, profundamente integrado aos nossos hábitos do cotidiano, sendo um dos melhores símbolos do bem-receber é o cafezinho; pois servir um café, partilhar numa conversa no balcão do botequim, da padaria em casa, no restaurante ou no bar é viver o momento de encontro. Assim, o brasileiro é um povo que bebe e gosta de café. Café com leite, café carioca, com um pouco d’água; café pingado com um pouco de leite, café puro; café na xícara ou no copo; na xícara de porcelana ou no copo de vidro grosso é sempre um prazer, uma emoção; pois o café estimula, faz a genteestarprontopara o dia, arremata as refeições, complementa sabores de doces, logo após comer a sobremesa.

É assim o café, trazido da África, da Etiópia, do oriente desse continente tão próximo do brasileiro, pois sem dúvida a nossa afrodescendência chega de diferentes lugares; da costa ocidental, Golfo de Benin; da área austral, Congo e Angola; da costa do Índico com Moçambique e pela civilização afro-islâmica há mais de milanos na co-formação da civilização ibérica, fazendo do homem português, também um colono africanizado.

“Nas encostas da montanha
O café vamos plantar,

Mas primeiro devemos

O terreno preparar.”

(poesia popular, São Paulo)

Algumas espécies nativas de Coffea estão na faixa equatorial que percorre grande parte da África, desde a Etiópia até o Congo, expandindo-se para o sul, chegando em Angola. A espécie Coffea Arábica, é da Etiópia, sendo levadopelosárabes, provavelmente no século XVI ouinício do século XVII, para o Iêmen, ao sul da penínsulaarábica, no litoral do MarVermelho. O comércio amplia-se com os holandeses que levaram sementespara Java (Indonésia), onde foi a cultura do café introduzida em 1690. Assim, o Coffea Arábica iniciou sua trajetória e chega em outros lugares do mundo; de Java para o Ceilão, ao sul da Ásia; chegando nesse continente pela Costa de Malabar, na Índia (1700). Em seguida China, Formosa, Filipinas, Nova Guiné entre outras localidades.

De Batávia (Java), o café viajou para as Américas via Amsterdã (Holanda), em cujo Jardim Botânico a espécie rubiácea, cafeeiro, é encontrado por volta de 1706. Os holandeses presentearam o Rei Luís XIV, da França, com muda retirada daquele Jardim Botânico, sendo então cultivada no Jardim Botânico de Paris, e de onde saíram para as Américas, levadas por um oficial da Marinha francesa, De Clieux; mas, somente uma delas chegou a estelado do Atlântico, sendo plantada na Ilha de Martinica, nas Antilhas. Assim, teria sido ela a mãe de milhões de cafeeiros existentes nas Américas.

O café na América do Sulchegapelo Suriname em 1714, seguindo para Caiena, 1718, entrando então no Brasil em 1727.

“Atravessei o rio a nado,

Num barquinho de café,
Para ir ao outro lado,
Para encontrar com José.”

(Poesia popular, São Paulo)

O café que vem de longe

Da África, pelas mãos dos árabes, chegando ao mercado da Europa, atinge as Antilhas, daí a América do Sul, enfim ao Brasil.

As primeiras mudas e sementes de café foram trazidas ao Brasil pelo sargento-mor Francisco de Melo Palheta, em 1727, que as obteve em Caiena, aonde fora, em missão oficial do governo brasileiro, estando como governador da Guiana Francesa, Claude d’Orvilliers, após verificar os marcos entre o Pará e a Guiana, no Rio Oiapoque.

A Coffea Arábica desenvolve-se muito bem em terras amazônicas, do Norte, terras tropicais de Belém do Pará. Daí espraiando-se pelo Brasil, ocupando territórios, chegando ao gosto do nosso povo, retomando certamente hábitos tão antigos e ancestrais que agora aproximam o continente africano, o mundo islâmico no novo mundo, América, caracterizando internacionalmente uma bebida nossa, certamente integrada a essa tão evidente afrodescendência.

Depois do Pará, o café chega ao Maranhão em 1728, em 1747 no Ceará, em 1770 ma Bahia; segue pelo Vale do São Francisco e entra em Goiás. A produção atendia ao consumo doméstico até fins do século XVIII, quando a alta de preços, decorrente do mercado do Haiti, dá impulso à sua cultura nos países coloniais da América e da Ásia. Em 1770, Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, bispo do Rio de Janeiro, faz os primeiros plantios no Rio de Janeiro, distribuindo mudas e sementes de sua fazenda e orientando novos agricultores. Espalham-se os cafezais por Minas Gerais e Espírito Santo, chegando no Vale do Rio Paraíba, São Paulo.

Assim, em 1790, o café marca e fica em São Paulo, terra consagrada como do café, terra que segue um novo ciclo após as minerações de ouro e diamante. O ouro transforma-se e muda de cor. Grãos vermelhos e maduros de café; café torrado, marrom, novoscheiros, sabores e mercados. É São Paulo desbravando nas fazendas o amplo e importantecicloeconômico do café.

“Amar sem ser amado,

É o mesmo que coar café
Num coador furado.”

(poesia popular, São Paulo)

Esse Brasil agrário, nasceu no século XVI do plantio de cana sacarina, cana-de-açúcar e ganha no século XIX o mundocomo o grande produtor de café. Terras do Vale do Paraíba, São Paulo, momento também do fim do tráfico de escravos, 1850, mais tarde a libertação oficial em 1888.

Novos caminhos, novos trabalhadores chegam com a imigração organizada da Itália, povos para trabalhar o café, o ciclo econômico dominante, do novo ouro que vai até a boca enquanto bebida não apenas brasileira, mas de gosto mundial.

Certamente além do gosto tão característico, o café tem um cheiro dominante, marcante, pois o ato de torrar o café é um anúncio que estimula o paladar, a boca, culminando na bebida quente, saborosa, um verdadeiro símbolo nacional.

“Minha terra tem café,

Que dá frutinha miudinha,
Quem beber deste café,
Ficará bem mulatinha.”

(poesia popular, São Paulo)

Os processos artesanais de torrar café têm suas histórias aliadas às cozinhas grandes e generosas das fazendas. Os processos do plantio, colheita, torrar, fazer e servir café seguem diferentes rituais, tendo no fruto estimulante o elo socializador de receber em casa, pois na bebida constrói-se o imaginário do brasileiro junto a uma xícara de café, embora a erva-mate e outras bebidas façam também os nossos patrimônios regionais.

O café é torrado geralmente em torradores redondos e usa-se também torrar o café em panelas e em caldeirões de ferro.

O café torrado está no pontoquando adquire cor marrom-escura. Se o café é de tipodoce, adquire cor marrom-clara; se for ácido, a torra tem que se rmais forte, para não dar bebida ácida.

O saber popular e tradicional orienta as tecnologias do torrar, do cuidar dos gostos, mais tarde celebrados com açúcar, acompanhado de biscoito, bolo ou mesmo com licor, conhaque, vinho do Porto, entre outras.

Café, bom de ver, de cheirar, de tomar e assim se sentir mais brasileiro.

Glossário

Água de batata – Café fraco.
Bauru – Abundância de mato no cafezal. Dizem: “Está um Bauru”, isto é, está um matagal.
Boca de pito
– Café tomado antes de fumar.

Broaca
– Pequena caixa de madeira feita de couro, que se coloca nas cangalhas, do burro de carga. O mesmo que Bruaca.
Bugaio – Bugalho; jogo com Felipe de café ou pequenas pedras, usado por moças e crianças.
Café tropeiro
– Segue a mesma técnica do café muçulmano, sem uso do coador, realizando a decantação do café.

Capão
– Caroço de café em que um grão é grande e o outro pequeno, o que acontece quando toma chuva de pedra.

Chafé
– Café fraco, ralo.

Felipe
– Caroço de café, achatado, com três ou mais grãos.

Levanta
– Varredura, varredela ligeira, antes da colheita.

Mangote – Mangas compridas, avulsas, usadas pelos colonos na colheita de café, presas aos polegares por meio de duas alcinhas e amarradas às costas por dois cordões ou tiras.
Panha – Colheita de café; apanha; apanhação.

Pinha – Botão, bem fechado, da flor do café.

Repasse – Ato de apanhar ou varrer o café que restou na árvore ou no chão, após a primeira colheita, quando não foi bem feita.

Roncolho – Bago de café que só tem um grão.

Timbó – Café amargo, muito forte, com pouco açúcar.

Tintura – Café muito forte, café escuro.

Vaca – Peça de tabua retangular, de mais de um metro de largura, com dois tirantes de cordas, terminados em alça, usada para esparramar e amontoar o café no terreirão, durante a secagem; é operado por três pessoas, duas que puxam a “vaca”, colocando nos ombros as alças de corda e a terceira que lhe dá direção, manejando um cabo de madeira.

Xibéu
– Café fraco, com muita água.

Nota: Artigo, 1990.

RAUL LODY
TUTOR / OPANES

Recife, 14 de fevereiro 2022

Jorge Sabino