Joselito da Silva Motta - Pesquisador da Embrapa
A mandioca (Manihot esculenta Crants) é uma planta da família das Euphorbiaceas, originária do continente americano, mais especìficamente no Brasil Central, de onde se espalhou pelo mundo tropical, alcançando os continentes africano e asiático e sendo hoje cultivada em cerca de 80 países do planeta. Os estudos em sítios arqueológicos auxiliados pelo uso do carbono 14 indicam nosso país como o centro de origem e dispersão da espécie. Sua importância alimentar é base de sustentação para mais de 600 milhões de pessoas no mundo.
Nos primórdios do descobrimento, ano de 1500, os portugueses a encontraram como alimento básico dos índios, servindo como complemento indispensável sob a forma de farinha acompanhando a carne e o peixe abundantes; logo em seguida, tornava-se o principal energético para o trabalho escravo e dos bandeirantes no desbravamento do nosso território.
Em 1553, o padre José de Anchieta, na sua chegada ao Brasil, vendo a importância da mandioca, logo a batizou de pão da terra ou pão dos trópicos. Um dos primeiros registros feitos sobre a raiz autóctone pelo escrivão do descobrimento, Pero Vaz de Caminha, ao rei de Portugal, diz: “Eles não lavram nem criam; aqui não há boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha ou qualquer outra criação que acostumada seja ao viver dos homens”; ao referir-se aos nativos dizia: “são tão rijos, tão nédios que não o somos tanto, com tanto trigo e legumes que comemos”. Quando se referia ao alimento dos nativos escreveu: “eles não comem senão doutra coisa a não ser dum inhame que brota da terra”; este inhame a que se referia era a mandioca, desconhecida do colonizador europeu que conhecia algo semelhante, o inhame, proveniente das colônias da África portuguesa.
A história do Brasil é muito pródiga em registros sobre a importância da mandioca e tem como aliada o escritor e folclorista Luís da Câmara Cascudo, autor do livro A História da Alimentação do Brasil, que destinou um capítulo especial à mandioca, denominado-a de Rainha do Brasil, onde destaca seu valor histórico, cultural, alimentar. Sua obra totaliza 164 livros e o torna a maior expressão literária do Rio Grande do Norte.
O antropólogo alemão Hans Staden, que à época do descobrimento se incorporou em Lisboa à esquadra de Cabral, tem inúmeros registros de fatos que colocam a Raiz do Brasil como o fundamental, o basalto, o recurso, a provisão, como relata Cascudo. Alguns historiadores apontam para o fato que, se o Brasil não tivesse mandioca, o tempo de desbravamento do nosso território seria muito mais longo ou mesmo quase impossível; a farinha, principal derivado, dado a sua vida útil prolongada, foi logo incorporada a intendência de navegação como suprimento alimentar e atendia também outras expedições que aportavam no Brasil em direção às Américas. Seguia também para a África, para servir de alimento nos porões dos navios negreiros, na viagem ao Brasil e também nos ciclos do Pau Brasil, da cana de açúcar, do café etc.
Seus derivados, originalmente obtidos pelos indígenas, seguiam alguns passos: primeiro a raiz era descascada e ralada em artefatos rústicos feitos com lascas de pedras ou dentes de animais crivados na madeira, para, em seguida, ser prensada no tipiti, e seguir o caminho da produção da farinha; do escorrimento da manipueira leitosa, surgia por decantação a tapioca úmida matéria prima para os beijus e tapiocas recheadas; estas, mereceram o registro na cartas de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal: “faz-se por aqui umas broas chamadas beijus ou filhós, tão alvos e saborosos que superam em muito o pão desse reino”. Os primeiros governadores gerais do Brasil, Thomé de Souza, Duarte da Costa e Mem de Sá, embora portugueses e tivessem o privilégio do trigo à mesa, preferiam os derivados da mandioca por considerá-los mais saudáveis.
Em outro momento da história, na última década do século XVIII, comerciantes especuladores antevendo as secas cíclicas do Nordeste, compravam a farinha de mandioca para venderem a preços elevados no momento da crise. O fato obrigou o governo da época a confiscar a farinha – primeiro produto confiscado – para vendê-la a preços módicos para as populações carentes; a chegada da farinha do governo era anunciada com foguetes daí a expressão também registrada na história – farinha de foguete.
Dentre todos os momentos da história da Raiz do Brasil, o mais destacado acontece no século XIX, com a instalação da 1ª Constituição do Brasil, em 1823, denominada A Constituição da Mandioca; chamada elitista, era a expressão da importância da mandioca: o povo não votava e somente os detentores de posse, que não era avaliado em moeda corrente mas sim em alqueires de farinha de mandioca (medida em litros); para votar na paróquia era necessário ter um patrimônio equivalente a 150 alqueires de farinha de mandioca; na província, a 250 alqueires de farinha; para se candidatar a deputado, a 500 alqueires de farinha e a senador a 1.000 alqueires de farinha de mandioca.
Numa determinada passagem de minha vida profissional, tive a oportunidade de participar do programa de TV denominado ‘Muvuca’, e a Regina Casé me perguntou porque se come tanta farinha de mandioca no Brasil. Cunhei a resposta com a seguinte descrição: “é porque a farinha no prato aumenta o que está pouco, esfria o que está quente e engrossa o que está ralo, e na pança é quem dá sustança”.
A importância da mandioca foi preponderante no período colonial e se estendeu ao longo dos séculos como base alimentar, com presença mais destacada nas regiões Nordeste e Norte do país; é cultivada em quase 02 milhões de hectares, com franca adaptabilidade em todo o território nacional, decorrente de suas características de resistência a seca e de produzir em solos de baixa fertilidade.
O Brasil produz em torno de 27 milhões de toneladas de raiz, provenientes na quase totalidade de mais de 14 milhões de agricultores familiares. A condição de maior produtor mundial, que possuía em anos passados, foi ultrapassada pela Nigéria, República do Congo, Tailândia e mais recentemente por Ghana, caindo para o posto de quinto lugar. Essa condição é indicadora da necessidade de políticas públicas adequadas e maior conhecimento de sua versatilidade de usos na alimentação humana e animal, formas apropriadas para torná-la um diferencial na fixação do homem no campo, auxiliando sobremodo no equilíbrio social.
Conhecida sob a denominação de mandioca, aipim ou macaxeira, a ciência esclarece as diferenças: as mansas, chamadas de mandioca nas regiões Sul e Sudeste e Centro Oeste, e de aipins ou macaxeiras ou de mesa no Nordeste possuem teor de HCN (ácido cianídrico) baixo para o consumo fresco, limite menor que 100ppm, e as bravas, utilizadas para a indústria, com teor acima de desse valor e que se torna reduzido pelo processamento das raízes e parte aérea.
Caldos, sucos, pães, bolos de puba, de aipim, escondidinho, bolachas, biscoitos, paçocas, cuscuz, tortas, rocamboles, mingaus, sopas, cremes, pudins, sorvetes, farinhas, pirões, purês, farofas, pizza, maniçoba, tacacá, tucupi, tucupi preto, chibé, caxirí, chimango, chiringa, avoador, pêta, ginête, brevidade, casadinho, cozido e assado, sagu, farinha de tapioca, tapioca pipoca, tapioca recheada, pão de queijo, beijus tradicionais e coloridos preparados com frutas e hortaliças; pratos quentes e frios, doces e salgados são exemplos da vasta culinária regional espalhada Brasil afora, como iguarias que evidenciam a presença da Raiz do Brasil.
Essas possibilidades tão variadas, todas marcadas pelo componente energético proporcionado pelo amido, podem fazer parte do cardápio diário da merenda escolar no Brasil, em substituição a vários produtos industrializados, muitos deles inconvenientes à saúde das crianças e que são determinantes nos hábitos alimentares durante a juventude e na vida adulta.
Em complemento a sua vasta utilização, está presente no segmento industrial para fabricação de colas, tintas, papeis, papelões, indústria e farmacêutica e petrolífera, como pastas antiabrasivas na extração do petróleo em altas profundidades; está presente no setor de cosméticos e atua na confecção de embutidos de carnes, presuntos e mortadelas e como espessante em ketchup, mostarda e maionese. Assume grande relevância através de amidos modificados biodegradáveis, na confecção de copos, bandejas, sacolas etc., em contraposição aos plásticos derivados do petróleo e fontes permanentes de poluição ambiental.
Ao concentrarmos a atenção na riqueza de alternativas proporcionadas pela raiz, não devemos desprezar o potencial alimentar proporcionado pela parte aérea da planta; enquanto a raiz é rica em carboidratos representados pelo amido, as ramas e folhas são fonte de proteínas, vitaminas e minerais com elevado teor de proteínas – 28 a 32% nas folhas – Fe, Ca, Vits B1, B2, B6, Vit C e, principalmente, vitamina A; toda sua riqueza pode estar na mesa ao ser transformada em mais carne, leite e ovos como suprimento alimentar dos animais sob a forma de farinha das folhas, feno, raspa e silagem.
A versatilidade da mandioca se revela também através do seu amido diferenciado contido nas raízes, com ampla aplicação na indústria de cosméticos, petrolífera, siderúrgica, papeleira, de cervejas, confeitaria, colas, tintas, embutidos de carne, sorvetes, balas, dentifrícios, panificação, especialmente na substituição do trigo importado, e mais recentemente, na fabricação de embalagens biodegradáveis, ecologicamente corretas. Agrega-se ainda outro valor de grande importância alimentar que é o fato de não conter glúten, tornando-se adequado aos portadores da doença celíaca.
Mas, para obstruir a saga alimentar da mandioca, estava reservada no inicio da década de 50 do século passado uma estratégia estranha aos nossos interesses: a entrada do trigo como alternativa alimentar; amparada pelos subsídios e com uma política determinada a tornar o grão alimento de consumo nacional. A indústria emergente da mandioca foi sufocada pelos interesses do capital estrangeiro; mais tarde, numa política novamente equivocada, o país subsidiou o trigo por 20 anos, excluindo mais uma vez a mandioca e, em conseqüência, ampliando nossa dívida externa.
No momento atual, o país consome cerca de 8.5 milhões de toneladas de farinha de trigo, cerca de 80% importada, resultando num custo anual da ordem de 2 bilhões de dólares. Os estudos realizados pela Embrapa indicam o uso da fécula da mandioca para substituir em até 20% o trigo importado na fabricação do pão francês, carro chefe da panificação, em 30% para outros produtos e até 40% nas massas de pizza.
Pelo exposto, inegavelmente a mandioca se constitui uma riqueza ainda muito pouco conhecida; entre os vegetais é o maior patrimônio alimentar do mundo tropical. Sua versatilidade no plano da alta gastronomia permeia chefs de cozinha e culinaristas do porte de Iracema Sampaio, Nelson Conceição, Braulino Oliveira, Teresa Corção, Alex Atala, Dona Lucinha, Margarida Nogueira, Neide Rigo, Beth Beltrão, Claude Troisgros, Beto Pimentel, Paulo Martins, Rafael Sessenta, Tereza Paim, Ofir Oliveira, Faustino Paiva, Layr Marins, entre outros que emprestaram ou emprestam sua contribuição nos dias de hoje.
Destacada no plano cultural, passa pelo crivo de Gabriel Soares de Souza, Manoel da Nóbrega, José de Anchieta, Jean de Lerry, Debret, Rugendas, Câmara Cascudo, Couto de Magalhães, Pinto de Aguiar, Milton de Albuquerque, Antônio José da Conceição, Patativa do Assaré, e se traduz nas músicas de Luiz Gonzaga, Djavan, Juraildes Cruz, Xangai, Raimundo Sodré e expressões populares na voz de cantadores, repentistas e cordelistas.
Torna-se portanto imprescindível o resgate de toda a riqueza cultural, alimentar e industrial que se encerra na mandioca, para que seu reconhecimento possa permear com mais intensidade as regiões, estados e municípios brasileiros.
Contato: Embrapa Mandioca e Fruticultura Tropical
Cx. Postal 07, Cruz das Almas – Bahia CEP 44380-000
Tel: (75) 3312 8043 (trabalho) e (75) 9143 9362 (pessoal)
Veja também
Cuscuz de Massa Puba: da Terra à Mesa – Paraíba
O cuscuz de massa puba leva alimentos adicionais, se assim desejar. Faz parte da nossa história, cultura, e representa uma identidade local, tendo como base a mandioca que descansa por sete dias em
A Presença do Cuscuz na Vida do Sergipano – Sergipe
A preparação demandava tempo. Levando em conta que o milho teria que estar seco para ser cozido e depois ralado, a mandioca ralada e preparada, a farinha seca e quentinha nas casas de
A Versatilidade da Mandioca e Sua Aplicabilidade na Indústria Cervejeira – Ceará
É possível verificar a versatilidade e o crescimento da utilização da raiz tuberosa, considerando que a mandioca é um alimento resistente a diversidades de solos e baixa fertilidade. Tem sua origem na América
Observação Sobre a Comunidade Alto do Sítio, Município de Ceará Mirim – Rio Grande do Norte
Além da mandioca, eles cultivam milho, feijão verde, coco, banana e batata doce. Esses produtos são trocados entre os moradores e seus familiares, e o excedente é vendido em feiras próximas. O local
A Mandioca e Seus Subprodutos Comercializados na Feira Livre de São Lourenço da Mata – Pernambuco
Um dos principais produtos extraídos da mandioca é a farinha. Há diversos tipos de farinha espalhados pelo Brasil, desde farinhas mais finas até mais granuladas, para uso em diversas preparações. Outros produtos também
Comida de Rua à Base de Mandioca – Bahia
O aumento do desemprego fomentou a venda de comida de rua tornando-se para muitos brasileiros a única oportunidade de trabalho, o que explica o elevado contingente de vendedores ambulantes. Para muitos consumidores, a