Vanessa Santos Silva – SENAC-CE
São amplas, arraigadas e multifacetadas suas conexões com o território do Ceará e sua gente, tal como acontece em outras localidades nordestinas, evidenciando presença comum no cotidiano das refeições e merendas, dos quitutes de festa. Reivindicado, não à toa, como patrimônio alimentar, esse queijo resguarda um conteúdo emocional distintivo, além de especificidades regionais não apenas nas formas de sua produção e consumo, mas também na composição das texturas, cores e sabores que o tornam uma mercadoria requisitada, um alimento afetivo.
João Castanho Dias afirma que o coalho seria o mais antigo dos cinco queijos nacionais que, em sua concepção, merecem ser chamados, à moda francesa, de terroir brasileiros – juntamente com aqueles oriundos da Serra da Canastra, do Salitre e do Serro, em Minas Gerais, e dos Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul.
Dispondo de, pelo menos, três séculos de existência, o queijo coalho configura um tipo de comida experiente, comunicadora dos percursos constituintes do Ceará que hoje conhecemos e habitamos. Contar sua história implica remontar aos movimentos de colonização portuguesa e de ocupação do semiárido nordestino, à chegada dos primeiros bois ao Brasil (vindos de Cabo Verde) e sua excepcional adaptação às pastagens sertanejas, onde se desdobrou uma complexa e sofisticada cultura do pastoreio, do couro e do leite.
Ali, o queijo coalho encontrou terreno fértil para enraizar e se definir, adaptando-se às condições que lhe foram impostas e impondo também adequações, na medida em que colaborava na reconstrução sócio-histórica dos cenários – traçados, a partir de então, na forma das fazendas de criação, das estradas de boi e das carroças, das primeiras queijarias.
As técnicas do colonizador português para coalhar o leite, conservando-o em formato de queijo, mostraram-se engenhosidades fecundas para a dinâmica da sobrevivência no interior cearense, tantas vezes marcado por quadros de seca e escassez. Portanto, antes mesmo de se tornar mercadoria, o coalho era uma espécie de abono para os tempos mais desprovidos. Depois de maturado em tábua de madeira, era frequentemente armazenado em caixotes com arroz e farinha, de onde poderia ser retirado para consumo até dois ou três anos depois. Nessas condições, tornava-se duro e coriáceo, mais utilizado para a rala, como tempero. Todavia, as versões frescas ou maturadas por poucos dias constituíam a preferência local, conforme relataram viajantes do século XVII, tal como Henri Koster – uma predileção, aliás, ainda hoje observada entre cearenses. E, por ser considerado um alimento resistente ao clima local e “de sustância”, capaz de nutrir e saciar a fome, era refeição comum para se levar nas longas jornadas empreendidas pelos comboieiros (vendedores itinerantes) que circulavam pelo Norte-Nordeste até o início do século XX.
Com estes viajantes, o queijo coalho passou a circular também como um produto comercial. Até a virada do século XIX para o XX, no entanto, é possível inferir que havia apenas uma tímida inserção desse alimento em redes de escambo, posto que há registros de que ele era trocado por farinha, rapadura e sal. Mas estas trocas, e os mencionados deslocamentos a elas associados, favoreceram conexões entre rural e urbano, tornando o coalho (também chamado, em alguns registros da época, de “queijo do sertão”), comida requisitada nos espaços citadinos, tal como em Fortaleza.
Silva Melo afirma a presença de queijo coalho no Mercado Público de Fortaleza já em 1948 – em um texto, aliás, emblemático de um tempo ainda incipiente da industrialização alimentar no Ceará, quando o caldo de cana era mais requisitado que a Coca-Cola, conforme aponta o autor. Entretanto, é mais precisamente na segunda metade do século XX que mudanças significativas ganham terreno.
Na década de 1970, os filhos de pequenos produtores começam a transitar pela capital para fazer aperfeiçoamentos técnicos ou cursar graduações, e o queijo se transforma, neste período, em uma forma de “fazer dinheiro”, um meio para garantir a vida longe de casa. Gradativamente, a demanda de Fortaleza começa a concentrar o volume de produção e o coalho vai sendo, cada vez mais, transformado em negócio de família e símbolo cultural, redefinindo a economia em várias regiões.
Ele desbanca a agricultura de grãos e a dedicação ao mesmo institui novas rotinas de trabalho, novos objetos, novas técnicas e tecnologias, bem como investimentos na indústria de laticínios e o estabelecimento de espaços para sua negociação comercial – como as feiras, em um primeiro momento, e as boutiques especializadas em queijo, posteriormente.
As grandes bacias leiteiras do estado vão configurando-se também em polos produtores de queijo coalho, tais como as regiões do Vale do Jaguaribe, Sertão Central e Sertão dos Inhamuns. Em cada localidade, a configuração específica de fatores de diversas ordens (sociais, econômicos, ambientais etc.) afeta o leite e cria queijos que, embora parecidos nas formas de fabricação, guardam singularidades.
Geralmente, a despeito das variações, o processo de feitura considerado artesanal (isto é, quando não há pasteurização) inicia-se com a adição do coagulante ao leite cru, recém ordenhado. Uma vez coalhado este leite, parte-se para a “quebra”, momento em que a coalhada é mexida com as mãos ou com instrumento específico (quebrador), de modo a favorecer a separação entre soro e massa, como é chamada a coalhada com soro reduzido. Segue-se a primeira dessoragem, realizada de forma manual, com a ajuda de vasilhas de plástico. O soro retirado é aquecido e retorna para ser adicionado à massa, que nesse processo recebe um cozimento.
Uma segunda dessoragem é realizada, seguida da salga (adição de cloreto de sódio). O próximo passo é a enformagem. As formas são forradas com um pedaço de pano e preenchidas com massa de queijo. Depois elas são encaixadas numa prensa, que aperta a massa, tornando-a mais densa na medida em que se faz escorrer o soro restante.
Uma vez finalizada a prensagem, os queijos estão prontos para consumo. A conservação, geralmente, inclui as doze primeiras horas de cura externa, em ambiente natural e com viradas regulares dos queijos de trinta em trinta minutos, seguidas de refrigeração. Em média, cada quilo de queijo consome dez litros de leite.
Tais procedimentos são processos ativos, renegociados em meio à atualização dos princípios norteadores das dietéticas em cada tempo, das regras sanitárias que pautam tais ofícios, do movimento pendular que hora ressalta o queijo-renda, ora celebra o queijo-cultura, geograficamente identificado e historicamente eleito como fonte de identificação.
Se o coalho é um “alimento vivo” (como se referem seus produtores, ressaltando o universo microrgânico relativamente autônomo que o compõe), também viva é a rede de relações na qual ele figura como elemento de uma convivência mutuamente definidora, do próprio queijo e das pessoas que com ele interagem.
Seja como sustento nos recônditos de uma pequena queijaria rural; como ingrediente nas receitas familiares do baião-de-dois de domingo ou complemento para a tapioca do café da manhã de todo dia; assado em fogareiros itinerantes para tira-gosto nas beiras de praia; ou integrando a sofisticação dos menus de bistrôs pelo mundo, o queijo coalho apresenta-se como valor e significância, e interpela discretamente a construção social dos modos de ser e pensar no Ceará – afinal, ingerir um alimento é também transformar-se, fisiológica e politicamente, em meio ao próprio ato de comer: comida é cultura e conhecimento.
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